A hora do refluxo

Por Breno Reis

originalmente em http://engulhos.tumblr.com/post/50542058312/a-hora-do-refluxo

Nessa empreita de aprimorar a objetividade do estudante de jornalismo e transformá-lo em uma máquina de escrever leads, limando de sua vida adjetivos e advérbios de modo… ele tem de escrever uma notícia. Sem adjetivos, sem advérbios, sem generalização, sem opinião, sem frases em ordem inversa, sem índice de indeterminação do sujeito, sem manchetes longas. Quase um exercício da Oulipo. Ei-la:

 

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Às 14h da quinta-feira, 9, o Cine Refluxus, cineclube do curso de Cinema e Audiovisual da UFC, exibe o documentário Santiago, de João Moreira Salles, na Casa Amarela Eusélio Oliveira.

Santiago é um documentário de longa-metragem lançado em 2007, baseado na vida do mordomo da família Moreira Salles. Após a exibição do filme, acontece debate com Marcelo Dídimo, professor do Curso de Cinema e Audiovisual da UFC e coordenador do Cine Refluxus.

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Sem as lâmpadas que geralmente contornam os degraus de cinema, a única luz na sala de exibição da Casa Amarela é a da tela – Santiago tocando castanholas.

O gênero documentário sugere, à primeira vista, compromisso com um retrato verídico da realidade, assim como o jornalismo – embora o cinema possa se dar ao luxo da subjetividade. Mas Santiago é um documentário metalinguístico; o espectador vê o processo de montagem do filme, com comentários do diretor (na voz em off de seu irmão, Fernando). João Moreira Salles suscita a desconfiança de quem assiste: enquanto a câmera focaliza a piscina da mansão de sua família, duas folhas de árvore caem no mesmo lugar sobre a água e ele pergunta se aquilo foi natural ou foi fabricado pela equipe de gravação. Em vários momentos, a entrevistadora de Santiago pede que ele repita suas falas ou que faça determinadas poses. Santiago existiu, suas histórias são verídicas; mas quando as poses e repetição das falas viram encenação, aquilo deixa de ser verídico e o público etá sendo enganado?

A transcrição de uma entrevista jornalística se dá da mesma forma que o processo de montagem de Santiago. Algumas frases são interrompidas pela metade e não aparecem na versão final da entrevista, palavras repetidas são substituídas, etc. É uma maneira de primar pela objetividade e pela facilidade da leitura, mas isso significa manipular as palavras do entrevistado e/ou enganar o leitor?

A entrevista abaixo, por exemplo, foi transcrita de um modo que parece ter sido feita simultaneamente com todos os entrevistados, embora o professor Marcelo Dídimo tenha sido entrevistado antes da exibição de Santiago; e a comissão organizadora do Cine Refluxus, após. As mesmas perguntas foram feitas a todos, mas em momentos diferentes, porém… estou eu enganando o leitor?

 

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Conversei com o professor Marcelo Dídimo antes da exibição de Santiago. Eu já o conhecia de nome – que eu havia visto há algum tempo na livraria, na capa de seu livro O Cangaço no Cinema Brasileiro.

O Cine Refluxus é um projeto de extensão do curso de Cinema e Audiovisual da UFC e tem seu quadro de bolsistas renovado anualmente. Rafael de Jesus é um dos dois atuais bolsistas do Cine Refluxus. Grenda Lisley e Saulo Monteiro fazem parte da comissão organizadora do Cine Refluxus, que conta com cerca de dez integrantes.

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Agora em abril, o Cine Refluxus completou três anos de atividade. De lá pra cá, alguma coisa mudou na linha do cineclube?

Marcelo Dídimo: O Cine Refluxus foi criado junto com o curso de Cinema e Audiovisual da UFC. Quando o curso iniciou em 2010, na primeira oportunidade que a gente teve de montar o cineclube, a gente o fez. De lá pra cá a gente tem sempre usado o espaço da Casa Amarela como local de exibição e temos mantido sempre a proposta de trazer pro público filmes que não entram em circuito comercial, filmes que às vezes a gente não consegue ter acesso nem em locadora; a gente tem que baixar na internet. O que vem mudando é o público. A gente tá sempre renovando a comissão, o que também afeta o público. A cada turma de cinema que entra, mais público comparece. E isso acho que acontece com a comunidade de uma forma geral. Cada ano que entra uma nova turma de jornalismo, publicidade, vêm pessoas novas. Então a gente tem mantido o formato e o que mudou realmente nesses três anos foi muito mais a rotatividade do público. O espaço continua o mesmo, a proposta continua a mesma, e apesar de já estar há três anos em atividade, é muito recente. Então acho que a gente vai manter essa proposta durante um tempo e quando chegar na hora certa, a gente vê se muda o horário ou muda o local, coisas desse tipo.

 

A programação do Cine Refluxus é bastante variada, vai de Sonata de Outono a Kung Fu Contra as Bonecas. Como é feita a escolha dos filmes?

Marcelo Dídimo: A gente sempre teve uma programação muito diversificada e a gente tenta manter essa diversidade através dos convidados, ou da necessidade que os professores do curso de cinema têm pra mostrar alguns filmes pros alunos, ou por parte da comissão ou dos próprios alunos de cinema. Então realmente a gente tenta passar desde o trash ou da pornochanchada como Kung Fu Contra as Bonecas, até filmes de arte, cult. Então nossa preocupação é diversificar; é mostrar de tudo um pouco pra que todo mundo tenha acesso ás várias formas de fazer cinema no Brasil ou fora dele.

Saulo Monteiro: Na verdade quem escolhe os filmes são os convidados. A gente primeiro tem em mente quem a gente vai convidar. Pode ser um professor, um realizador, algum aluno… E aí a gente vê se ele pode vir na quinta feira e tentamos marcar. Às vezes não dá e a gente vai atrás de outra pessoa. Mas o filme fica à escolha do convidado.

Grenda Lisley: A gente escolhe o convidado já tendo em mente de qual tipo de filme ele gosta, se gosta mais de cinema contemporâneo ou clássico. A gente já tem uma ideia do que ele vai escolher.

Rafael de Jesus: Uma vez por semestre, a gente elege uma lista de filmes pra que os alunos escolham qual filme será exibido, aí a própria comissão organizadora debate.

 

Como vocês avaliam o cenário de cineclubes em Fortaleza?

Grenda Lisley: Acho que quando a gente começou no Cine Refluxus, não havia tanto cineclube quanto agora. Agora tem mais. Agora abriu o cineclube do Cefet, já tinha o Cine Freud, o Cine Caolho, o da Unifor.

Saulo: Tá muito fértil, tem muito cineclube aqui em Fortaleza. Eu até fico surpreso. Isso é legal.

Marcelo Dídimo: Eu acho que tem crescido bastante. Acho que a própria universidade tem uns três ou quatro cineclubes. Tem outros espaços alternativos como o CUCA Che Guevara, o Cine Caolho, o BNB, a Vila das Artes. É interessante por ser um espaço que geralmente não cobra ingresso, ou seja, você tem possibilidade de participar. Geralmente é um espaço onde tem discussões e debates posteriormente, então não se limita a só ver o filme, mas falar sobre o filme, ou sobre a obra do diretor. Eu acho que os cineclubes têm crescido e são uma janela importante para a exibição, porque você não fica dependendo de shopping centers, que agora só tão passando Homem de Ferro 3. Um filme de grande porte como esse toma simplesmente metade das salas do Brasil e a gente perde o espaço.

 

Filmes de grande porte, como Homem de Ferro 3, também são passíveis de debate?

Marcelo Dídimo: Acho que todo filme é passível de debate, uns mais, outros menos. Inclusive debate sobre a produção, sobre a própria exibição: por que Homem de Ferro tá tomando conta de metade das salas do Brasil? Todo filme é passível de debate, mas cada um direciona o debate pra uma linha ou pra outra. O debate tem que ser mantido e intensificado independente da obra, independente do tema do debate que a obra suscita. O debate é saudável e importante pra que a gente escute opiniões e teha uma percepção geral do que o público tá sentindo do filme. Então, o debate é viável em qualquer área do cinema, em qualquer obra audiovisual, seja blockbuster ou um filme menos comercial.

 

Qual a importância do debate?

Saulo Monteiro: Fazer as pessoas conversarem. Acho que é uma das coisas mais importantes do cineclube; não é só exibir o filme, mas conversar sobre o que você achou, as reflexões e impressões que você teve, pra fazer as pessoas se agregarem. Acho legal por isso.

Rafael de Jesus: Cinema convencional tem muito a questão da passividade. Tô ali pra assistir um filme e ele não reage em mim, assim. O cineclube promove uma relação ativa como cinema; você recebe, mas tá criticando, você não tá enxergando só o que tá diante dos seus olhos, mas também o que tá nas entrelinhas.

Saulo Monteiro: Conversando com outras pessoas, você pode descobrir coisas que você não teve impressão, ou a mesma impressão; você pode dialogar com as pessoas. Você não assiste o filme, fica com uma impressão e vai pra casa. Você tem outras pessoas com quem debater, discutir o que você achou.

Grenda Lisley: O mais importante do nosso cineclube é conversar sobre cinema, né? O fazer. Porque a gente fala de fotografia, de roteiro, de como foi realizado. Às vezes professores ou os convidados sabem de coisas sobre a produção e é super importante pra nós do curso e também pra quem é cinéfilo.

Saulo Monteiro: Se o debate é bom, você pode aprender muita coisa sobre produção de cinema. O Rafael teve a ideia de estender o debate pra web, então no site do Cine Refluxus tem um fórum. Você se inscreve…

Rafael de Jesus: O cadastro é rápido, você recebe uma senha por e-mail e pode comentar, fazer perguntas…

Saulo Monteiro: É livre. Você pode perguntar e não se inibam. Não tenham essa impressão: “ah, porque são filmes de arte e fora de circuito”; talvez as pessoas fiquem inibidas. Pode fazer qualquer pergunta, aí a gente conversa, debate.

 

Além do debate, do que mais o público pode usufruir no cineclube, diferente de uma sessão de shopping center?

Grenda Lisley: Os filmes em si são um diferencial. Não são filmes que a gente vê em todo cineclube. Tem filmes que os professores trazem que a gente fica “Caraca, esse filme existe?”, né?

Saulo Monteiro: A gente não separa os filmes por gênero nem por diretor. A intenção é pegar filmes que não circulem no circuito padrão.

Grenda Lisley: Mas a proposta é mais trazer filmes em que o fazer deles é um diferencial.

Marcelo Dídimo: Acho que o diferencial tá no tipe de filme que o Refluxus exibe, que é um cinema que não se encontra num shopping center, por exemplo. E a possibilidade de estar participando de debates exatamente sobre o filme ao qual muitas vezes não se tem acesso e sobre uma temática que pode enriquecer bastante sua visão sobre a obra audiovisual, sobre a produção cinematográfica no Brasil – porque às vezes o debate toma rumos inesperados, né? Um filme comercial pode levar a uma discussão sobre produção de cinema independente no Brasil. Então, acho que o diferencial do Cine Refluxus é esse, é ter um espaço pra você ver esse cinema que você não vê numa sala comercial e, após a exibição, você ter a oportunidade de participar de um debate que só enriquece as nossas visões sobre o cinema, de uma forma geral.

 

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Sobre um tripé em uma das poltronas da primeira fileira, uma câmera grava o debate com o professor Marcelo Dídimo acerca do filme. Santiago se insere no tema de seu projeto de pesquisa O Diálogo entre a Ficção e o Documentário no Cinema Brasileiro Contemporâneo, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC. O vídeo do debate já está disponível no site do cineclube.

O professor Dídimo frisa que as sessões do cineclube são abertas ao público em geral. “Todo mundo pensa que o Cine Refluxus, por ser do curso de cinema da UFC, só permite a entrada de alunos do cinema ou da universidade, mas não. Todo mundo da comunidade cearense está convidada a vir pro Cine Refluxus.”

As sessões do Cine Refluxus acontecem na Casa Amarela Eusélio Oliveira (Av. da Universidade, 2591) todas as quintas-feiras, às 14h – depois do almoço (a hora do refluxo; daí o nome do cineclube). A entrada é franca e há entrega de certificado de quatro horas de atividade complementar para os participantes da sessão + debate.

 

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